sexta-feira, 3 de abril de 2009

Cultural por natureza

Estamos acostumados a pensar uma série de dicotomias a respeito da “natureza” do ser humano, como sendo pólos opostos ou contraditórios. Entre as mais importantes estão: matéria versus espírito, corpo versus mente, emoção versus razão, e animalidade versus humanidade. Elas são todas derivadas de uma dicotomia mais ampla, entre natureza e cultura. A partir do pressuposto de que estas sejam coisas separadas, estabelece-se uma barreira intransponível entre os universos animal e humano.

Essa visão de mundo deve muito ao pensamento de Renè Descartes, que, embora tenha o mérito de ter sido um dos criadores da ciência moderna, separou matéria e espírito de forma irreconciliável. Em oposição a tais dicotomias, a ciência contemporânea propõe uma abordagem sistêmica, interdisciplinar e re-integradora daquilo que ciência tradicional segmentou.



Edgar Morin, um filósofo da ciência, afirma que essa mudança de pensamento constitui a passagem de um “paradigma da simplificação” para um “paradigma da complexidade”. Outro importante aspecto desta nova forma de pensar é a idéia de que nenhum método ou teoria é suficiente para dar conta das múltiplas causas e facetas dos fenômenos estudados pela ciência. A superação da clássica dissociação entre cultura e natureza passa pela compreensão de que o ser humano apresenta a específica contingência de ser cultural por natureza. A compreensão dessa unitas multiplex deve ser buscada não nas dicotomias, mas nos seus circuitos constitutivos: cérebro-mente-cultura; razão-afeto-pulsão; e indivíduo-sociedade-espécie. Já não estaremos diante do conhecido problema de saber se o que vemos é ou um cálice ou duas faces quando entendermos que se trata tanto de um cálice como de duas faces...

O pensamento complexo, nas palavras de Morin (1997),


rechaça as conseqüências mutilantes, reducionistas, unidimensionalizantes e finalmente cegadoras de uma simplificação que se toma por reflexo daquilo que possa haver de real na realidade. [...] De tal sorte que o pensamento complexo é animado por uma tensão permanente entre a aspiração a um saber não parcelado, não dividido, não reducionista, e o reconhecimento do que é inacabado e incompleto em todo conhecimento.


Vários critérios que serviam para separar rigidamente os homens dos animais – conforme propõe o criacionismo, com base no relato mítico da Bíblia – têm sido colocados em xeque desde a obra fundamental de Charles Darwin. Inúmeros estudos etológicos têm sido conduzidos com os chimpanzés, os animais mais próximos evolutivamente ao ser humano, cuja estrutura de DNA apresenta uma semelhança com a humana que, conforme a leitura que deles se faça, chegam à ordem de 99,4% (embora este número esteja em disputa, parece não haver nenhum pesquisador que aponte menos de 95% de semelhança). Eles revelam que estes primatas não apenas são capazes de construir e utilizar ferramentas, como de transmitir esse conhecimento às gerações mais novas, e de utilizar formas de comunicação simbólica. Eles possuem recursos mentais muito superiores àqueles tradicionalmente aceitos no mundo animal, como a utilização de operações mentais que envolvem algumas generalizações e abstrações, além da capacidade de pensamento dedutivo, de memória e de planejamento de ações futuras.

A contrução de ferramentas e sociabilidade, o que inclui a cultura material e simbólica (a mitologia e os rituais), são partes indissociáveis da nossa “natureza”. Estes aspectos são partes do processo evolutivo do animal humano. E mais, a psicologia evolucionista, ou darwinista, coloca a solidariedade social no centro da natureza humana. Ou seja, se tivessem predominado na evolução as forças egoístas sobre aquelas da solidariedade e da cooperação, a espécie humana não teria sobrevivido. Assim, amor, piedade, generosidade, remorso, afeição amistosa e confiança duradoura, por exemplo, são partes de nossa herança genética, tanto ou mais que os sentimentos hostis.

Têm sido igualmente frustradas as tentativas de separação entre o que é inato, ou genético, e o que é aprendido, ou resultado das influências ambientais. Esta distinção está no centro de grandes embates da filosofia e das ciências da mente. As pesquisas sugerem, entretanto, que a estrutura biológica pode limitar ou condicionar aquilo que será aprendido, mas não determiná-lo de forma direta e imediata. Como afirma Morin, a complexidade da condição humana exige a compreensão de que o ser humano é por natureza, cultural.

Outro desdobramento da dicotomia cartesiana e aquele que põe em ladas opostos emoção e razão, uma vez que se associa a primeira aos instintos (nossa parte mais primitiva e “animal”), enquanto a razão seria o atributo mais evoluído de nossa condição (o que nos faria “humanos”). Contrariamente a esta idéia, o neurologista português radicado nos EUA, Antonio Damasio, escreveu o livro O erro de Descartes. Nele, argumenta que emoção e razão são expressões de um mesmo processo mais amplo, e não existem plenamente uma sem a outra. Razão e emoção, cérebro e mente, são integrados e indissociáveis...

Outros teóricos, partindo das contribuições da teoria das relações objetais e levando em conta os mecanismos neurofisiológicos envolvidos nos processos afetivos e cognitivos, concluem que esses dois conceitos não se referem a coisas distintas, mas antes que o afeto (sentimento) é a forma primitiva da cognição (pensamento). É a partir da empatia, quando os cuidadores ajudam o bebê a dar nomes ao que está sentindo, que a capacidade de representação mental desses afetos vai se formando. Ao invés de se ocupar de uma suposta oposição entre o que é biológico e o que é mental, ocupa-se de entender como ocorre a passagem de um tipo de fenômeno ao outro.

Enfim, a inteligência, habilidades pessoais, traços de personalidade, assim como os transtornos mentais, embora possam ser fortemente determinadas por predisposições genéticas, são, ao mesmo tempo, resultado de experiências passadas e das condições ambientais presentes. Para os profissionais da saúde mental, o pensamento complexo pode contribuir decisivamente na tarefa de romper com velhas e inúteis barreiras, que colocam em lados opostos a psicologia e a medicina, a psicoterapia e os psicotrópicos, o individual e o social. Essa nova visão de mundo justifica e fornece as bases teóricas para a compreensão da multicausalidade dos transtornos mentais; e da multidisciplinaridade nas estratégias de tratamento.


Os outros que somos

A natureza da identidade pessoal, pensada como “alma”, já estava presente no pensamento ocidental desde a Antiguidade. Após o interregno da Idade Média, ela é retomada na Idade Moderna com fortes traços de racionalidade, autonomia e auto-determinação. Entretanto, toda a reflexão sistemática sobre o indivíduo – seja como um ente metafísico, sensível, racional ou político – era realizada no âmbito da filosofia. É apenas no início do século XX que surgem disciplinas científicas bem definidas que têm como objeto o conhecimento da mente humana. Com o advento da Psicologia e da Psicanálise, a idéia da racionalidade como centro das decisões humanas, tão cara à Modernidade, sofre um importante revés.

A identidade pessoal é resultante do entrecruzamento de múltiplas vertentes e não pode ser separada dos processos de interação humana em seus vários níveis: as identificações que se iniciam no contexto familiar; as trocas simbólicas que ocorrem nas vivências cotidianas e que são diferentes em cada cultura particular; e as forças de agrupamento e coesão provenientes das religiões, dos partidos políticos, da noção de “raça” e de nacionalidade, etc.

O psicólogo norte-americano George Mead, fundador da escola denominada Interacionismo Social, foi um dos primeiros, no ínicio do século XX, a dar a devida destaque às identificações do indivíduo com os “outros significativos”. Esta expressão, largamente utilizada na psicologia até hoje, refere-se às pessoas mais importantes no convívio da pessoa, que serão as matrizes para a construção da identidade pessoal. Segundo Mead, a sensação que cada um tem de ser uma pessoa única se constroi apenas indiretamente, a partir da inserção no grupo social. O Eu, embora tenha um núcleo biológico, não pode ser concebido fora do campo das experiências das trocas sociais, e a a linguagem é o veículo primordial desse processo.

Mais ou menos na mesma época, o fundador da psicanálise, Sigmund Freud, construía as bases de seu edifício teórico, que enfatizou como nunca antes a importância das relações precoces do bebê na formação de sua futura personalidade. Esta idéia vem sendo cada vez mais comprovada pelas ciências neurobiológicas atuais, embora com uma outra linguagem e com pontos de partida completamente diferentes. Estudos recentes comprovam que as conexões neuronais que definem grande parte dos modos de funcionamento da mente, tanto em seus aspectos saudáveis quanto patológicos, formam-se exatamente nesses primeiros anos da vida.

Segundo Freud, a psicologia individual é sempre uma psicologia social, já que todos nós trazemos dentro de nós, principalmente num nível inconsciente, as imagens e os exemplos das figuras importantes que nos constituem. Inicialmente, e com mais importância, de nossos cuidadores básicos da primeira infância, e, depois, de tantas outras pessoas com quem vamos convivendo.

Um dos mais influentes seguidores de Freud, o inglês Donald Winnicott, ampliou a teoria sobre a importância da mãe para a saúde mental do bebê, e para a formação de sua futura personalidade. Para tanto, afirma ele, é necessário que a mãe seja “suficientemente boa”, com a capacidade de reconhecer os primitivos estados de ânimo do bebê (fome, frio, desconforto, etc.) e de satisfazer as suas necessidades básicas. Na medida em que a mãe lhe dá a segurança de que não vai abandoná-lo, e de que sempre retorna quando se afasta, o bebê gradualmente vai se dando conta de que é um ser separado. A sensação de estabilidade dos vínculos emocionais é, portanto, crucial para a manutenção da segurança ontológica (e da auto-estima) e para o desenvolvimento saudável da criança.

Quando o processo de desenvolvimento psicológico da criança não ocorre de forma satisfatória, há uma forte possibilidade de que ela cresça uma pessoa insegura de seus próprios valores, e que buscará constantemente a segurança nos relacionamentos com os outros. É a isso que Winnicott denomina de “falso-eu”, que leva a uma modalidade de relacionamento com os outros baseada na submissão e na busca de aprovação. A pessoa vive num faz-de-conta, tentando se parecer com cada um de quem se aproxima.

O cineasta Woody Allen retratou muito bem esse tipo de personalidade no filme Zelig, sobre um homem camaleônico que assume impressionante semelhança com aqueles que o rodeiam. Conforme o narrador do filme afirma,
a própria existência de Zelig é uma não-existência. Desprovido de personalidade, ele é um número, um ninguém, um fenômeno em atuação. Ele, que só queria se encaixar, participar, passar desapercebido por seus inimigos, e ser amado; nem se encaixa, nem participa.

Algumas das faces de Zelig

O falso-eu é uma das manifestações do narcisismo patológico, juntamente com a necessidade de símbolos externos de poder para dar sustentação à uma auto-estima excessivamente frágil.

Além das referências pessoais (mais próximas), a identidade pessoal e social é constituída pelas referências ao tempo e ao espaço: onde e quando nascemos, nos graduamos, vivemos e trabalhamos, são informações primárias para a nossa identificação.

Toda pessoa tem necessidade de reconhecer a si mesma, e de ser reconhecida, como uma pessoa única, entre tantas outras. Por outro lado, há a necessidade de pertencimento: a sensação de que não se está só, de que se faz parte de uma comunidade, de uma religião, de uma cultura ou de uma nação. A construção da identidade envolve, portanto, estas duas forças contraditórias e complementares: a vontade de ser único e a vontade de fazer parte.

Em última instância, toda identidade é “grupal”. Há um processo de dupla mão, no qual a comunidade reconhece o indivíduo como um dos seus, e o indivíduo reconhece os modelos fornecidos pela comunidade. Os membros de um grupo compartilham sistemas simbólicos e geralmente têm os mesmos tipos de experiências. Assim, as identificações grupais se constituem em estratégias de manutenção da segurança ontológica e de sobrevivência psíquica.

Animalidade versus humanidade

Os critérios tradicionais de animalidade e humanidade têm sido colocados em xeque por inúmeros estudos etológicos, principalmente aqueles conduzidos com os chimpanzés, os animais mais próximos evolutivamente ao ser humano, cuja estrutura de DNA apresenta uma semelhança com a humana da ordem de 98%. Tais estudos deixam claro que estes primatas não apenas são capazes de construir e utilizar ferramentas, como de transmitir esse conhecimento às gerações mais novas; de utilizar formas de comunicação simbólica; além de apresentarem comportamentos de evitação do incesto.
A partir de seu extenso trabalho de observação de chimpanzés, Fouts relata os processos de aprendizagem e de transmissão trans-geracional da utilização da linguagem de sinais dos mudos por estes primatas, através da qual evidenciou recursos mentais muito superiores àqueles tradicionalmente aceitos no mundo animal, como a utilização de sintaxe nas frases; a classificação através de tipos lógicos; a utilização de operações mentais complexas envolvendo algumas generalizações e abstrações; além da capacidade de pensamento dedutivo, de memória e de planejamento de ações futuras. Estes recursos mentais colocam por terra os pressupostos cartesianos da desvinculação do ser humano do mundo animal e da separação entre razão e intuição, e contradizem a hipótese de Chomsky da existência de um órgão de linguagem – uma estrutura neurológica – que seria especifico da espécie humana. Ao contrário, sugerem que, através da manipulação ambiental, um bebê pode ter seu cérebro influenciado para que se afaste do processo simultâneo de inteligência, que é tão crucial na selva, e se oriente para o processo sequencial requerido para a linguagem humana.
Dois atributos ainda distinguem o ser humano de seus parentes próximos, os grandes símios: (A) a capacidade de construir e utilizar ferramentas para utilizar outras ferramentas (por exemplo, usar uma linha na agulha), e (B) a consciência da própria consciência.
Por fim, é bom lembrar que, a rigor, está errado chamar de "macacos" os grandes primatas (chimpanzés, gorilas, orangotangos e bonobos). Eles constituem uma família diversa dos "outros" macacos, e sua linhagem evolutiva provém de um ramo comum a nós, humanos.
Referências:
FOUTS, R. (1998) O parente mais próximo: o que os chipanzés me ensinaram sobre quem somos. Rio de Janeiro: Objetiva.
MATURANA, H. & VARELA, F. (1995) A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: Editorial Psi.
SMITH, C.M. (2006) O despertar da mente moderna. Viver mente&cérebro, novembro.
WERNER, D. (1997) O pensamento de animais e intelectuais: evolução e epistemologia. Florianópolis: Editora da UFSC.



Fuegian, nativo da Terra do Fogo

Fonte: Darwin Online

Um & muitos

O ser humano não se diferencia de outros animais simplesmente porque pensa, mas porque é capaz de pensar sobre o próprio pensamento. Tampouco se diferencia por ter uma consciência de si mesmo, pois já está provado que os primatas superiores (como os chimpanzés) também a têm. O ser humano se diferencia por ter consciência da própria consciência! Assim, somente nós podemos, além de nos perguntarmos quem somos, nos perguntarmos também: mas afinal, o que é ser alguém?, ou então, o que é o Eu?
É bem verdade que, se já são poucos os que se fazem o primeiro tipo de questionamento, menos numerosos ainda são os que se preocupam com o segundo, além dos filósofos. Entretanto, se nos detivermos sobre essa pergunta, talvez sequer saibamos dizer se o Eu (com maiúscula para diferenciar do pronome pessoal) é um substantivo concreto, como uma “pessoa”, ou abstrato, como a “consciência”. O Eu não é nem bem uma coisa nem outra, mas um “constructo”, mais um conceito do que uma coisa com existência concreta, assim como são constructos o centro de gravidade e a força magnética.
Vejamos a definição de Eu (self) no dicionário Webster´s, uma espécie de Aurélio norte-americano: “é a pessoa integral de um indivíduo; o caráter ou comportamento típico de um indivíduo (como quando se diz “o seu verdadeiro Eu foi revelado”); um comportamento ou caráter temporário do indivíduo (como quando se diz “ele mostrou o melhor de si-mesmo”); a união de elementos (corpo, emoções, pensamentos e sensações) que constituem a individualidade ou a identidade de um pessoa”.
Vamos examiná-la mais de perto. Em primeiro lugar, dizer que é a pessoa integral do “indivíduo” significa dizer, pela etimologia da palavra (o que não pode ser dividido); que o Eu é uma só coisa, é monolítico, como um bloco permanente e imutável. Convenhamos: não é assim que geralmente nos vemos e sentimos.
Outro sinônimo elencado é “identidade”. Novamente aqui devemos recorrer à origem da palavra, que vem do latim idem, ou seja, “o mesmo”. Mas, será que nosso Eu é sempre o mesmo, no sentido de ser sempre igual? Este conceito é igualmente problemático. Nossas experiências pessoais nos permitem perceber o que as teorias contemporâneas sobre a identidade afirmam que somos ao mesmo tempo um e muitos. E as teorias nem tão contemporâneas também. Afinal, meu Eu de professor pode ser bastante diverso do meu Eu de terapeuta, que por sua vez difere substancialmente do Eu familiar, embora todos tenham um núcleo em comum.
Sobre multiplicidade do ser humano, há um delicioso livro do italiano Luigi Pirandello, cujo sugestivo título é Um, nenhum e cem mil. Trata-se do relato sobre um sujeito que, certo dia, dá-se conta de que tem um defeito no nariz que nunca antes havia notado. A partir daí, faz uma tortuosa viagem mental para chegar à conclusão de que

mesmo para si mesmo, o fulano tem tantas realidades quantos são os seus conhecidos, porque comigo ele se conhece de um modo e, com vocês e com terceiros, de outro, e assim por diante, embora permaneça a ilusão especialmente nele de ser um só para todos.

Em outras palavras, somos a um só tempo iguais e diferentes, tanto em situações diversas, na mesma época, quanto ao longo de nossas vidas, na medida em que passamos por diferentes idades. Antes de ser única e constante, a nossa identidade é dinâmica e multifacetada (aqui há uma contradição de termos, pois a identidade não seria, portanto, idêntica...). A questão que se coloca para a psicologia é saber em que medida o sujeito se mantém o mesmo, e tem uma vivência suficientemente forte do que é, apesar da passagem do tempo e das mudanças contextuais.
Já na virada do século XX, William James, um dos pais da Psicologia, propôs uma teoria sobre a identidade, segundo a qual o Eu seria dividido em três partes: o material, o espiritual e o social. No conceito de eu material estariam incluídos, além do próprio corpo, todas as posses do indivíduo, materiais ou afetivas. O conceito de eu espiritual referia-se ao conjunto de valores intelectuais, morais e religiosos. E o eu social foi atribuído ao reconhecimento que cada um obtém dos outros. Como o próprio James escreveu: “um homem tem tantos eus sociais quantos são os indivíduos que o reconhecem e dele levam uma imagem na mente”.
Por outro lado, também Freud dedicou grande parte de seu trabalho a mostrar que o psiquismo é formado por distintas partes (superego, ego e id), que entram em conflito e buscam soluções de compromisso. Além disto, a Psicanálise está fortemente baseada na idéia de que a identidade pessoal é um “precipitado” de inúmeras identificações ocorridas ao longo da vida, principalmente nas fases mais precoces do desenvolvimento.



Os antropólogos nos informam que se desconhece qualquer cultura humana que não tenha um termo para designar a noção de “eu”, e pelo menos uma alguma idéia abstrata de identidade. Apesar disto, as maneiras como a identidade é pensada ao longo do tempo e através das culturas varia grandemente. Ainda assim, a idéia de um Eu indivisível, coeso e permanente persiste, pelo menos no senso-comum, como a versão predominante na cultura ocidental da qual fazemos parte, e é uma das principais heranças da modernidade.
Na Antiguidade essa noção aparece em conceitos que compreendem uma gama de significados associados a uma idéia comum de “alma”, ou de uma parte incorpórea – metafísica – do ser humano. Em sânscrito havia alman, em grego psyche, em latim animus e spiritus. Muitos desses conceitos remetiam ao que viria a ser denominado posteriormente de “mente”, “psiquismo”, ou “identidade”. Essa superposição de significados existe ainda hoje no idioma alemão, com o termo Seele, que se refere tanto à alma quanto à mente, e que foi a palavra usada originalmente por Freud em suas obras para se referir à mente.
A concepção de pessoa ou indivíduo, tal como a entendemos, tampouco coincide com aquela que existe em outras culturas. Em várias sociedades (quando) ainda não contaminadas pela cultura ocidental moderna, o conceito de Eu não tem a conotação de um ser autônomo e independente, mas sim a alguém que faz parte de um todo maior. Entre os Zulu da África meridional, por exemplo, existe a seguinte expressão: umuntu ngumuntu ngabantu, que significa “você é apenas uma pessoa por causa das outras pessoas”. E o conceito de humanidade, nesta cultura, inclui não apenas as outras pessoas, mas também os outros seres vivos e falecidos, e os ambientes naturais e materiais que dão sustentação à vida.
Semelhante é o nisba, na cultura tradicional dos Sefrou, do Marrocos. O nisba é a partícula do nome de toda pessoa que a identifica com algum grupo de parentesco ou afinidade, significando “nascido em tal lugar”, “filho de fulano”, “de tal tribo”, etc. Algo como “Leonardo da Vinci”, ou seja, da localidade de Vinci.
Nessas culturas, a idéia de pessoa é muito mais relacional do que na nossa, e tem uma conotação muito menos individualizada que na nossa. Entretanto, pelo menos no campo das ciências humanas, isto vem mudando. Pode-se dizer que os Zulu e os Sefrou já antecipavam as tendências atuais de se pensar o mundo em termos sistêmicos e ecológicos, com o ser humano fazendo parte de contextos naturais e sociais mais amplos.

Capitalismo e (a)moralidade

A discussão sobre os dilemas morais contemporâneos freqüentemente expõe uma associação entre o capitalismo e a degeneração dos valores morais da sociedade, que teria reflexos profundos nas relações cotidianas. Há uma idéia amplamente compartilhada na sociedade de que vivemos uma era de empobrecimento moral generalizado ("anomia", no conceito de Durkheim), e que este é indissociável do capitalismo.

As vinculações entre o capitalismo e a falta ou deterioração dos valores morais tem uma longa história, a despeito de Max Weber, que vinculou o desenvolvimento deste à ética protestante, pela valorização do trabalho como caminho para a salvação, em oposição à tradição católica de vincular o lucro ao pecado.

Essa idéia aparece no trabalho de Georg Simmel, um sociólogo alemão que já em 1900 alertava para os problemas da “monetarização” das relações humanas, em seu livro A filosofia do dinheiro. Nele, Simmel argumenta que as trocas econômicas substituíram outras formas de interação humana. Por suas características impessoais e exatas, o dinheiro promoveria a racionalidade e a racionalização típicas das sociedades modernas. Na medida em que o dinheiro se torna o vínculo prevalente entre as pessoas, a calculabilidade invade todas as outras áreas da vida social, como os contextos de apreciação estética, que antes eram objeto de valorações qualitativas, assim como destrói laços de parentesco e de amizade, antes baseados na confiança e lealdade.

A mercantilização do mundo atual -- nessa perspectiva -- foi assim descrita por uma paciente, promotora de justiça e bastante politizada:


Eu fui criada num ambiente em que vigoravam alguns princípios que foram muito importantes para eu desvendar o mundo. Mas a gente vive num mundo em que tudo virou mercadoria, em que as coisas estão muito descartáveis. As pessoas dizem e desdizem, e eu, que persigo tanto a coerência, tenho a sensação que eu sou inadequada. As pessoas não têm valor, o que tem valor é o bem econômico. A água, por exemplo, que antes era considerada um bem universal, hoje é um bem econômico; ela tinha um valor social, hoje não. Daqui a pouco vão fazer com que o ar seja também mercantilizado. Quem tem uma carreira social, como eu, tem de lidar com esses dilemas, tem de enfrentar as contradições do mundo, tem de sobrepor os valores aos fatos, às coisas como acontecem.


Christopher Lasch, na década de 80, argumentou que os dilemas morais da sociedade de consumo estão relacionados ao abandono das tradições, dos valores familiares e da ética do trabalho. O narcisismo teria assumido a condição de identidade social, cujas características confundem-se amplamente com a noção de “individualismo”.

Mais recentemente ainda, Richard Sennet propõe a idéia de “corrosão do caráter” no novo capitalismo contemporâneo. Para a formação do caráter(1), sustenta ser necessário que haja um senso de progresso, de conquistas de objetivos a longo prazo, em nome dos quais os sacrifícios de vantagens imediatas valham a pena. Isto já não seria possível nos ambientes de trabalho típicos do “capitalismo flexível” contemporâneo, com ênfase no curto prazo, nos resultados imediatos e, sobretudo, na flexibilidade das relações empregatícias. Não há longo prazo e o mercado é por demais dinâmico; e a mobilidade geográfica e as mudanças de vínculos institucionais são a regra. Em vez das organizações com hierarquias piramidais, as organizações são agora pensadas como redes, e redefinem constantemente suas estruturas.

Se não há longo prazo, princípios como confiança, lealdade e compromissos mútuos, sobre os quais se constrói o caráter, tampouco se sustentam. O capitalismo de curto prazo, desta forma, teria um efeito corrosivo principalmente sobre as qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e que servem de base para a construção de um senso de identidade a longo do tempo. Como pode o ser humano desenvolver um sentimento de que sua vida tem um sentido de longo prazo numa sociedade composta por episódios e fragmentos?

Esse parece ser um panorama desolador, de pobreza moral e de enfraquecimento dos laços sociais de respeito mútuo e de cooperação, num mundo de desenfreada competição e de objetivos imediatistas. De fato, as pressões do mercado de trabalho geram uma maior competividade e a mercantilização das relações.

Outro aspecto -- sobretudo do capitalismo predatório que temos no Brasil -- é a manutenção e o agravamento das desigualdades sociais, ou seja, má distribuição de renda, que não é um defeito exclusivo do capitalismo nem tampouco generalizado. Assim, os problemas éticos criados pelo capitalismo estão associados aos problemas de justiça social; estes aumentam os riscos locais, da violência urbana e da criminalidade; que se sobrepõem aos riscos globais, sobre os quais pouco ou nenhum controle temos.

O grande desafio para a sociedade contemporânea está, assim, em superar os aspectos danosos e corrosivos do capitalismo dentro dos marcos da livre iniciativa e da tradição democrática, que são conquistas fundamentais da civilização ocidental.



(1) Por “caráter” entenda-se a parte da personalidade que congrega o conjunto de valores éticos do indivíduo. Na teoria psicanalítica, o caráter é resultante da mediação do ego entre as forças impulsivas e primitivas do id, e o superego, como instância psíquica responsável pelo recalque das pulsões mais primitivas (sobretudo agressivas e sexuais).


quinta-feira, 2 de abril de 2009

Interdisciplinaridade

Exerto do capítulo "Para uma concepção ecossistêmica e interdisciplinar do self", publicado no livro Paradigmas da Modernidade e sua Contestação, organizado por Franz Brüseke e Alan Serrano, com textos produzidos por alunos e professores do Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC (Editora Insular, Florianópolis, 2006).

Nele, faço um breve apanhado das transformações pelas quais vem passando o paradigma da ciência (da ciência tradicional à contemporânea), o surgimento e as bases do pensamento sistêmico, e uma proposta de concepção interdisciplinar de self (ou seja, do "eu", da identidade ou da mente). A figura abaixo reproduz um dos diagramas que utilizo para ilustrar os vários aspectos complementares das teorias do self, os modelos aos quais eles correspondem (médico, psicodinâmico e interpessoal), e as formas de intervenção terapêuticas correspondentes. Este esquema permite pensar o self de maneira interdisciplinar, sob uma lógica que Edgar Morin denomina de "aditiva" (que agrega diferentes perspectivas), em oposição à lógica "disjuntiva" (que separa), com a qual opera a ciência tradicional. Abaixo, a transcrição de segmento do texto original no qual tento deixar claro como penso a interdisciplinaridade na clínica psiquiátrica.

Pensado em termos da clínica psiquiátrica, este modelo permite a compreensão de como os relatos dos problemas que nos são trazidos pelos clientes podem ser organizados de acordo com um ou mais dos modelos operativos do médico/terapeuta, dando origem a diferentes "histórias clínicas" e condutas terapêuticas. A partir de queixas genéricas tais como irritabilidade, tristeza, insatisfação crônica consigo mesmo, e brigas constantes com o cônjuge, abrem-se múltiplas possibilidades de investigação, organização e denominação dos problemas. Os "sintomas" (usar esta palavra já implica numa determinada opção epistemológica) podem ser definidos como "distimia" (um tipo particular de "transtorno de humor", conforme a Classificação Internacional de Doenças), o que conduz ao uso de medicamenntos antidepressivos. As mesmas queixas podem ser caracterizaadas como expressão de uma "estrutura narcísica de personalidade" (segundo uma psicopatologia psicanalítica), caso em que serão abordadas as falhas do desenvolvimento psicossexual do indivíduo, através de uma psicoterapia. Uma terceira possibilidade (e não a última delas) é a organização do relato centrada nos problemas da relação conjugal, na focalização das pautas de interação familiar e de retroalimentação das condutas (note-se que, no campo das terapias familiares, há uma tendência hegemônica ao abandono das nosografias - i.e., ao uso de diagnósticos -, tanto médicas quanto psicológicas), implicando esta opção numa correspondente proposta de intervenção na forma de terapia conjugal ou familiar.

Há problemas para os quais um paradigma pode ter se estabelecido como dominante, e impor-se sobre os demais. É o caso do "transtorno afetivo bipolar" ou das "esquizofrenias", para cuja compreensão e tratamento o modelo médico tem-se mostrado indispensável. O mesmo não se pode afirmar sobre os sintomas conversivos e os comportamentos histriônicos, que constituem um território pouco permeável ao modelo médico, e propício às abordagens psicodinâmicas. Por outro lado, a terapia familiar tem se mostrado especialmente útil no tratamento de problemas de conduta na infància e na adolescência, que via de regra respondem de forma pobre a outras modalidades terapêuticas isoladas, apenas para ficarmos no campo dos exemplos mais comuns.

O fundamental, na perspectiva que vimos construindo, é poder situar-se epistemologicamente em relação a esses modelos, compreendê-Ios como diferentes recortes da realidade, perceber suas virtualidades e limitações, e operá-Ios segundo os conhecimentos e treinamentos de cada um. Isto significa, tammbém, reconhecer a unidade e a complexidade do ser humano, ao mesmo tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico, caracterizado, como afirma Morin, por sua condição tripartite de um indivíduo que se situa entre a espécie e a sociedade.

Tristeza ou depressão?

A palavra “tristeza” está em baixa no vocabulário contemporâneo. Afinal, em nossos dias, todos temos de ser felizes (e bonitos, e jovens) o tempo todo. Quando isto não é possível, as pessoas estão preferindo se dizer “depressivas”, pois aí existe o álibi de estarem doentes, e não sentirão a vergonha de terem se deixado abater por algo. Além disto, desde sempre as palavras tristeza e depressão têm sido usadas como sinônimos. Dizer que alguém está deprimido pode se referir a sentimentos de decepção, desesperança, desânimo e, é claro, de tristeza. No entanto, na psiquiatria há uma distinção importante entre elas, embora nem sempre muito facilmente compreensível para os leigos.



No campo médico, a tristeza é apenas um dos sintomas de um conjunto de manifestações que compõem a doença depressiva. Assim, não basta, do ponto de vista psiquiátrico, estar triste para que seja feito um diagnóstico de “depressão”. O sentimento de infelicidade deve ter uma duração determinada, e vir acompanhado de pelo menos certo número de outros sintomas, dentre os quais a falta de prazer e de disposição; pensamentos de doença, morte ou desvalorização; alterações de sono e apetite; e dificuldades de concentração e memória. Além disso, nem sempre o sintoma principal da doença depressiva é a tristeza. Às vezes ela dá lugar à irritabilidade e ao mau humor. Outras vezes, a tristeza fica menos evidente sob uma camada de ansiedade intensa.

Além disso, na sociedade contemporânea vem ocorrendo uma banalização e espetacularização da morte, o que contribui também para o isolamento emocional diante das perdas significativas. A morte é tão ostensiva e frequentemente mostrada em filmes e em noticiários, que paradoxalmente se torna um fenômeno emocionalmente distante de nós. Há ainda um mito social de que a pessoa deve reagir logo a uma perda (o que inclui o falecimento de alguém próximo), tocar a vida adiante, não se deixar abater. Tudo o que impede que o necessário luto seja vivenciado no seu devido tempo e com a necessária tristeza, sem o que a superação saudável se torna muito mais difícil.

Assim como se pode afirmar que a ansiedade e o medo são as reações naturais e esperadas frente ao desconhecido, a tristeza é a resposta normal frente às perdas de toda natureza: materiais, pessoais ou simbólicas. Entretanto, tem havido uma excessiva medicalização da tristeza e de outras características normais do comportamento humano. Esquece-se que a tristeza é fundamental para a elaboração de nossas experiências e para o aprendizado emocional. Se não nos entristecemos diante das perdas, ou dos sofrimentos próprios e alheios, não somos capazes de “elaborar” (resolver emocionalmente) essas experiências. A isto chamamos de “luto”, o período que se segue a qualquer perda importante.

Em psicoterapia, por exemplo, é necessário que o paciente tenha a oportunidade de se entristecer com as frustrações, com os insucessos, ou quando entra em contato com suas próprias limitações e responsabilidades nesses eventos. Ou seja, quando perde algumas idealizações sobre si mesmo. É por isso que uma terapia que somente forneça apoio ou consolo não ajuda ninguém a crescer, embora em algum momento estes recursos sejam fundamentais.

Muitas vezes o sentimento normal e saudável de tristeza é indevidamente tratado como depressão também pelos médicos e pelos serviços de saúde. Contribui para isso a má qualidade dos serviços públicos de saúde em nosso país, levando a atendimentos excessivamente rápidos e à busca de soluções simplificadoras. Se até recentemente o médico, diante de qualquer queixa emocional, entregava ao paciente uma receita de tranqüilizante (os famosos “faixas pretas”), agora a receita é de fluoxetina, o antidepressivo mais difundido, e disponível no sus. É evidente também a falta de uma formação adequada dos médicos para lidar com problemas emocionais dos pacientes, tanto no contexto privado quanto público. Tem havido um gradual progresso neste sentido; uma crescente tomada de consciência dos aspectos emocionais e psiquiátricos dos pacientes pelos futuros médicos, e não apenas pelos que pretendem seguir a carreira de psiquiatras. No entanto, este é um processo lento.

Sempre é bom lembrar que ficar triste nem sempre é estar com uma doença depressiva, e muito menos algo indesejável.



ILUSTRAÇÃO: foto de Marcus Claesson


O médico e a família do paciente

Segmento do capítulo "O médico e a família do paciente", publicado no livro Psiquiatria para estudantes de Medicina (referência ao final).

Andolfi (1996) afirma que "com a passagem para uma visão mais complexa das relações interpessoais, o modelo diádico não é mais suficiente, pois não dá conta do vasto sistema dentro do qual uma relação entre duas pessoas se desenvolve" (p. 30). Baseados nesta idéia, podemos dizer que a relação entre o médico e o paciente só pode ser observada e entendida se os contextos mais amplos em que ela ocorre forem levados em conta. Um deles é o serviço de saúde (hospital, ambulatório, clínica, consultório particular). Outro é família do paciente, com a qual se estabelece triangulação que pode ser definida pelos termos médico-paciente-família. De fato, dificilmente pode entender os processos de construção e manutenção da doença, sem levar em conta o contexto familiar do paciente. Da mesma forma, a família pode ser um contexto de cura, de potencialização de recursos terapêuticos (Cataldo e cols. [1999]; Soar Filho, 1998).

É desta unidade de observação que nos ocuparemos agora, discutindo as possíveis ressonânncias entre a história pessoal do médico e as histórias e configurações familiares de seus pacientes. O médico pode vir a ter uma relação tão intensa com a família do paciente (como nos casos de um politraumatismo grave com internação em UTI), e/ou tão prolongada (como nas enfermidades psiquiátricas e nas doenças crônicas em geral), que se pode afirmar que passa a formar, com ela, um sistema maior, que chamaremos, seguindo um modelo das terapias sistêmicas, de sistema terapêutico. Assim, ele fica sujeito a ser "absorvido" pelo sistema familiar, e a ocupar determinaadas funções que podem servir tanto à doença quanto à cura.



A história de vida do médico e, especialmente das relações com sua família de origem, pode ter uma grande influência sobre sua prática profisssional, tanto no sentido de prejudicar quanto de facilitar seu manejo de determinadas situações (daí a conveniência de que em algum momento de sua formação passe pela experiência de terapia pesssoal). Se o médico vivenciou, por exemplo, a morte de sua mãe por câncer, e na época sua família manteve segredo em torno do diagnóstico, não o revelando para "proteger" a mãe (geralmente o doente sabe de sua condição melhor que os familiares possam imaginar), ele pode vir a ter arreependimentos ou ressentimentos por não ter perrmitido que ela se preparasse para a morte, se despedisse devidamente da família, ou porque ele mesmo não lhe disse tudo o que gostaria de dizer. Tal situação pode, se não estiver devidamente elaborada, levá-lo a uma excessiva identificação com os familiares que passam por situações semelhanntes, gerando-lhe ansiedade e desconforto. Por outro lado, se tiver a oportunidade de aprender com sua vivência, poderá desenvolver uma maior empatia (capacidade de se colocar no lugar do outro), e sentir-se mais apto a ajudar as famílias de seus pacientes (Zimerman, 1992).

Pode ocorrer, também, que na família do paciente existam pessoas que lembram o médico de seus próprios parentes (e geralmente isto ocorre de forma inconsciente), como um pai autoritário, uma mãe depressiva, ou um irmão competitivo, gerando os sentimentos desagradáveis, Também pode ocorrer o contrário, que o médico venha a sentir desejo de proximidade, amor, ou aprovação em relação à família. Estas reações são denominadas, na teoria psicanalítica, de constratransferência, e a sua devida compreensão pode se tornar uma ferramenta para que o médico entenda melhor a si mesmo e à família.

Além das experiências pessoais do médico, existem aspectos de sua personalidade que podem dificultar o relacionamento tanto com o paciente individualmente, quanto com a família. Um médiico demasiadamente narcisista (que tem um senso de auto-estima demasiadamente frágil e dependente da aprovação dos outros) pode ter dificuldades em lidar com críticas, comportamentos de oposição à sua autoridade, e com toda uma gama de sentimentos que a família pode depositar nele, (frustração, raiva, impotência, medo ... ). Ele será visto pela família, em algum momento, como um “representante" do universo da doença e dos serviços de saúde (e, neste caso, muitas vezes as queixas são justificadas e realistas), e cabe ao profissional ter suficientemente continência (capacidade de entender e tolerar tais sentimentos, sem revidá-los).

Há situações em que, por mais que o paciente esteja orientado, não segue as orientações médicas. Afastadas outras causas, como as dificuldades financeiras, o médico deve investigar o ganho secundário da doença: as vantagens ou benefícios obtidos através dos sintomas, de exames, ou da condição de enfermo. São relativamente freqüenntes os casos de pessoas que, em função de seus problemas de saúde, passam a deter um enorme poder no interior do sistema familiar, mantendo com isso privilégios pessoais. O ganho secundário pode ter uma função comunicativa, quando a persistência do sintoma ou o boicote ao tratamento servem para expressar sentimentos de raiva, por exemplo, em relação ao marido, ao patrão, ou ao próprio médico ou serviço de saúde. Outras veezes, a doença pode servir para manter a estabilidade do sistema familiar, como já mencionamos anteriormente (Cataldo Neto e cols., [1999]; Soar Filho, 1998),

Diante do alto nível de responsabilidade da profissão médica, o auto-exame é parte indispennsável de sua prática. A melhor garantia contra os impulsos prejudiciais à relação, que se tornam manifestos no comportamento, é a mais ampla conscientização, por parte do médico, de seus sentimentos, necessidades e conflitos.

Referência:

Soar Filho, E.J. (2003). O médico e a família do paciente. Em: A. Cataldo Neto; G.J.C. Gauer & N.R. Furtado (org.). Psiquiatria para estudantes de Medicina. Porto Alegre: edipucrs.