Cultural por natureza
Estamos acostumados a pensar uma série de dicotomias a respeito da “natureza” do ser humano, como sendo pólos opostos ou contraditórios. Entre as mais importantes estão: matéria versus espírito, corpo versus mente, emoção versus razão, e animalidade versus humanidade. Elas são todas derivadas de uma dicotomia mais ampla, entre natureza e cultura. A partir do pressuposto de que estas sejam coisas separadas, estabelece-se uma barreira intransponível entre os universos animal e humano.
Essa visão de mundo deve muito ao pensamento de Renè Descartes, que, embora tenha o mérito de ter sido um dos criadores da ciência moderna, separou matéria e espírito de forma irreconciliável. Em oposição a tais dicotomias, a ciência contemporânea propõe uma abordagem sistêmica, interdisciplinar e re-integradora daquilo que ciência tradicional segmentou.
Edgar Morin, um filósofo da ciência, afirma que essa mudança de pensamento constitui a passagem de um “paradigma da simplificação” para um “paradigma da complexidade”. Outro importante aspecto desta nova forma de pensar é a idéia de que nenhum método ou teoria é suficiente para dar conta das múltiplas causas e facetas dos fenômenos estudados pela ciência. A superação da clássica dissociação entre cultura e natureza passa pela compreensão de que o ser humano apresenta a específica contingência de ser cultural por natureza. A compreensão dessa unitas multiplex deve ser buscada não nas dicotomias, mas nos seus circuitos constitutivos: cérebro-mente-cultura; razão-afeto-pulsão; e indivíduo-sociedade-espécie. Já não estaremos diante do conhecido problema de saber se o que vemos é ou um cálice ou duas faces quando entendermos que se trata tanto de um cálice como de duas faces...
O pensamento complexo, nas palavras de Morin (1997),
rechaça as conseqüências mutilantes, reducionistas, unidimensionalizantes e finalmente cegadoras de uma simplificação que se toma por reflexo daquilo que possa haver de real na realidade. [...] De tal sorte que o pensamento complexo é animado por uma tensão permanente entre a aspiração a um saber não parcelado, não dividido, não reducionista, e o reconhecimento do que é inacabado e incompleto em todo conhecimento.
Vários critérios que serviam para separar rigidamente os homens dos animais – conforme propõe o criacionismo, com base no relato mítico da Bíblia – têm sido colocados em xeque desde a obra fundamental de Charles Darwin. Inúmeros estudos etológicos têm sido conduzidos com os chimpanzés, os animais mais próximos evolutivamente ao ser humano, cuja estrutura de DNA apresenta uma semelhança com a humana que, conforme a leitura que deles se faça, chegam à ordem de 99,4% (embora este número esteja em disputa, parece não haver nenhum pesquisador que aponte menos de 95% de semelhança). Eles revelam que estes primatas não apenas são capazes de construir e utilizar ferramentas, como de transmitir esse conhecimento às gerações mais novas, e de utilizar formas de comunicação simbólica. Eles possuem recursos mentais muito superiores àqueles tradicionalmente aceitos no mundo animal, como a utilização de operações mentais que envolvem algumas generalizações e abstrações, além da capacidade de pensamento dedutivo, de memória e de planejamento de ações futuras.
A contrução de ferramentas e sociabilidade, o que inclui a cultura material e simbólica (a mitologia e os rituais), são partes indissociáveis da nossa “natureza”. Estes aspectos são partes do processo evolutivo do animal humano. E mais, a psicologia evolucionista, ou darwinista, coloca a solidariedade social no centro da natureza humana. Ou seja, se tivessem predominado na evolução as forças egoístas sobre aquelas da solidariedade e da cooperação, a espécie humana não teria sobrevivido. Assim, amor, piedade, generosidade, remorso, afeição amistosa e confiança duradoura, por exemplo, são partes de nossa herança genética, tanto ou mais que os sentimentos hostis.
Têm sido igualmente frustradas as tentativas de separação entre o que é inato, ou genético, e o que é aprendido, ou resultado das influências ambientais. Esta distinção está no centro de grandes embates da filosofia e das ciências da mente. As pesquisas sugerem, entretanto, que a estrutura biológica pode limitar ou condicionar aquilo que será aprendido, mas não determiná-lo de forma direta e imediata. Como afirma Morin, a complexidade da condição humana exige a compreensão de que o ser humano é por natureza, cultural.
Outro desdobramento da dicotomia cartesiana e aquele que põe em ladas opostos emoção e razão, uma vez que se associa a primeira aos instintos (nossa parte mais primitiva e “animal”), enquanto a razão seria o atributo mais evoluído de nossa condição (o que nos faria “humanos”). Contrariamente a esta idéia, o neurologista português radicado nos EUA, Antonio Damasio, escreveu o livro O erro de Descartes. Nele, argumenta que emoção e razão são expressões de um mesmo processo mais amplo, e não existem plenamente uma sem a outra. Razão e emoção, cérebro e mente, são integrados e indissociáveis...
Outros teóricos, partindo das contribuições da teoria das relações objetais e levando em conta os mecanismos neurofisiológicos envolvidos nos processos afetivos e cognitivos, concluem que esses dois conceitos não se referem a coisas distintas, mas antes que o afeto (sentimento) é a forma primitiva da cognição (pensamento). É a partir da empatia, quando os cuidadores ajudam o bebê a dar nomes ao que está sentindo, que a capacidade de representação mental desses afetos vai se formando. Ao invés de se ocupar de uma suposta oposição entre o que é biológico e o que é mental, ocupa-se de entender como ocorre a passagem de um tipo de fenômeno ao outro.
Enfim, a inteligência, habilidades pessoais, traços de personalidade, assim como os transtornos mentais, embora possam ser fortemente determinadas por predisposições genéticas, são, ao mesmo tempo, resultado de experiências passadas e das condições ambientais presentes. Para os profissionais da saúde mental, o pensamento complexo pode contribuir decisivamente na tarefa de romper com velhas e inúteis barreiras, que colocam em lados opostos a psicologia e a medicina, a psicoterapia e os psicotrópicos, o individual e o social. Essa nova visão de mundo justifica e fornece as bases teóricas para a compreensão da multicausalidade dos transtornos mentais; e da multidisciplinaridade nas estratégias de tratamento.