sexta-feira, 3 de abril de 2009

Capitalismo e (a)moralidade

A discussão sobre os dilemas morais contemporâneos freqüentemente expõe uma associação entre o capitalismo e a degeneração dos valores morais da sociedade, que teria reflexos profundos nas relações cotidianas. Há uma idéia amplamente compartilhada na sociedade de que vivemos uma era de empobrecimento moral generalizado ("anomia", no conceito de Durkheim), e que este é indissociável do capitalismo.

As vinculações entre o capitalismo e a falta ou deterioração dos valores morais tem uma longa história, a despeito de Max Weber, que vinculou o desenvolvimento deste à ética protestante, pela valorização do trabalho como caminho para a salvação, em oposição à tradição católica de vincular o lucro ao pecado.

Essa idéia aparece no trabalho de Georg Simmel, um sociólogo alemão que já em 1900 alertava para os problemas da “monetarização” das relações humanas, em seu livro A filosofia do dinheiro. Nele, Simmel argumenta que as trocas econômicas substituíram outras formas de interação humana. Por suas características impessoais e exatas, o dinheiro promoveria a racionalidade e a racionalização típicas das sociedades modernas. Na medida em que o dinheiro se torna o vínculo prevalente entre as pessoas, a calculabilidade invade todas as outras áreas da vida social, como os contextos de apreciação estética, que antes eram objeto de valorações qualitativas, assim como destrói laços de parentesco e de amizade, antes baseados na confiança e lealdade.

A mercantilização do mundo atual -- nessa perspectiva -- foi assim descrita por uma paciente, promotora de justiça e bastante politizada:


Eu fui criada num ambiente em que vigoravam alguns princípios que foram muito importantes para eu desvendar o mundo. Mas a gente vive num mundo em que tudo virou mercadoria, em que as coisas estão muito descartáveis. As pessoas dizem e desdizem, e eu, que persigo tanto a coerência, tenho a sensação que eu sou inadequada. As pessoas não têm valor, o que tem valor é o bem econômico. A água, por exemplo, que antes era considerada um bem universal, hoje é um bem econômico; ela tinha um valor social, hoje não. Daqui a pouco vão fazer com que o ar seja também mercantilizado. Quem tem uma carreira social, como eu, tem de lidar com esses dilemas, tem de enfrentar as contradições do mundo, tem de sobrepor os valores aos fatos, às coisas como acontecem.


Christopher Lasch, na década de 80, argumentou que os dilemas morais da sociedade de consumo estão relacionados ao abandono das tradições, dos valores familiares e da ética do trabalho. O narcisismo teria assumido a condição de identidade social, cujas características confundem-se amplamente com a noção de “individualismo”.

Mais recentemente ainda, Richard Sennet propõe a idéia de “corrosão do caráter” no novo capitalismo contemporâneo. Para a formação do caráter(1), sustenta ser necessário que haja um senso de progresso, de conquistas de objetivos a longo prazo, em nome dos quais os sacrifícios de vantagens imediatas valham a pena. Isto já não seria possível nos ambientes de trabalho típicos do “capitalismo flexível” contemporâneo, com ênfase no curto prazo, nos resultados imediatos e, sobretudo, na flexibilidade das relações empregatícias. Não há longo prazo e o mercado é por demais dinâmico; e a mobilidade geográfica e as mudanças de vínculos institucionais são a regra. Em vez das organizações com hierarquias piramidais, as organizações são agora pensadas como redes, e redefinem constantemente suas estruturas.

Se não há longo prazo, princípios como confiança, lealdade e compromissos mútuos, sobre os quais se constrói o caráter, tampouco se sustentam. O capitalismo de curto prazo, desta forma, teria um efeito corrosivo principalmente sobre as qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, e que servem de base para a construção de um senso de identidade a longo do tempo. Como pode o ser humano desenvolver um sentimento de que sua vida tem um sentido de longo prazo numa sociedade composta por episódios e fragmentos?

Esse parece ser um panorama desolador, de pobreza moral e de enfraquecimento dos laços sociais de respeito mútuo e de cooperação, num mundo de desenfreada competição e de objetivos imediatistas. De fato, as pressões do mercado de trabalho geram uma maior competividade e a mercantilização das relações.

Outro aspecto -- sobretudo do capitalismo predatório que temos no Brasil -- é a manutenção e o agravamento das desigualdades sociais, ou seja, má distribuição de renda, que não é um defeito exclusivo do capitalismo nem tampouco generalizado. Assim, os problemas éticos criados pelo capitalismo estão associados aos problemas de justiça social; estes aumentam os riscos locais, da violência urbana e da criminalidade; que se sobrepõem aos riscos globais, sobre os quais pouco ou nenhum controle temos.

O grande desafio para a sociedade contemporânea está, assim, em superar os aspectos danosos e corrosivos do capitalismo dentro dos marcos da livre iniciativa e da tradição democrática, que são conquistas fundamentais da civilização ocidental.



(1) Por “caráter” entenda-se a parte da personalidade que congrega o conjunto de valores éticos do indivíduo. Na teoria psicanalítica, o caráter é resultante da mediação do ego entre as forças impulsivas e primitivas do id, e o superego, como instância psíquica responsável pelo recalque das pulsões mais primitivas (sobretudo agressivas e sexuais).