sexta-feira, 3 de abril de 2009

Um & muitos

O ser humano não se diferencia de outros animais simplesmente porque pensa, mas porque é capaz de pensar sobre o próprio pensamento. Tampouco se diferencia por ter uma consciência de si mesmo, pois já está provado que os primatas superiores (como os chimpanzés) também a têm. O ser humano se diferencia por ter consciência da própria consciência! Assim, somente nós podemos, além de nos perguntarmos quem somos, nos perguntarmos também: mas afinal, o que é ser alguém?, ou então, o que é o Eu?
É bem verdade que, se já são poucos os que se fazem o primeiro tipo de questionamento, menos numerosos ainda são os que se preocupam com o segundo, além dos filósofos. Entretanto, se nos detivermos sobre essa pergunta, talvez sequer saibamos dizer se o Eu (com maiúscula para diferenciar do pronome pessoal) é um substantivo concreto, como uma “pessoa”, ou abstrato, como a “consciência”. O Eu não é nem bem uma coisa nem outra, mas um “constructo”, mais um conceito do que uma coisa com existência concreta, assim como são constructos o centro de gravidade e a força magnética.
Vejamos a definição de Eu (self) no dicionário Webster´s, uma espécie de Aurélio norte-americano: “é a pessoa integral de um indivíduo; o caráter ou comportamento típico de um indivíduo (como quando se diz “o seu verdadeiro Eu foi revelado”); um comportamento ou caráter temporário do indivíduo (como quando se diz “ele mostrou o melhor de si-mesmo”); a união de elementos (corpo, emoções, pensamentos e sensações) que constituem a individualidade ou a identidade de um pessoa”.
Vamos examiná-la mais de perto. Em primeiro lugar, dizer que é a pessoa integral do “indivíduo” significa dizer, pela etimologia da palavra (o que não pode ser dividido); que o Eu é uma só coisa, é monolítico, como um bloco permanente e imutável. Convenhamos: não é assim que geralmente nos vemos e sentimos.
Outro sinônimo elencado é “identidade”. Novamente aqui devemos recorrer à origem da palavra, que vem do latim idem, ou seja, “o mesmo”. Mas, será que nosso Eu é sempre o mesmo, no sentido de ser sempre igual? Este conceito é igualmente problemático. Nossas experiências pessoais nos permitem perceber o que as teorias contemporâneas sobre a identidade afirmam que somos ao mesmo tempo um e muitos. E as teorias nem tão contemporâneas também. Afinal, meu Eu de professor pode ser bastante diverso do meu Eu de terapeuta, que por sua vez difere substancialmente do Eu familiar, embora todos tenham um núcleo em comum.
Sobre multiplicidade do ser humano, há um delicioso livro do italiano Luigi Pirandello, cujo sugestivo título é Um, nenhum e cem mil. Trata-se do relato sobre um sujeito que, certo dia, dá-se conta de que tem um defeito no nariz que nunca antes havia notado. A partir daí, faz uma tortuosa viagem mental para chegar à conclusão de que

mesmo para si mesmo, o fulano tem tantas realidades quantos são os seus conhecidos, porque comigo ele se conhece de um modo e, com vocês e com terceiros, de outro, e assim por diante, embora permaneça a ilusão especialmente nele de ser um só para todos.

Em outras palavras, somos a um só tempo iguais e diferentes, tanto em situações diversas, na mesma época, quanto ao longo de nossas vidas, na medida em que passamos por diferentes idades. Antes de ser única e constante, a nossa identidade é dinâmica e multifacetada (aqui há uma contradição de termos, pois a identidade não seria, portanto, idêntica...). A questão que se coloca para a psicologia é saber em que medida o sujeito se mantém o mesmo, e tem uma vivência suficientemente forte do que é, apesar da passagem do tempo e das mudanças contextuais.
Já na virada do século XX, William James, um dos pais da Psicologia, propôs uma teoria sobre a identidade, segundo a qual o Eu seria dividido em três partes: o material, o espiritual e o social. No conceito de eu material estariam incluídos, além do próprio corpo, todas as posses do indivíduo, materiais ou afetivas. O conceito de eu espiritual referia-se ao conjunto de valores intelectuais, morais e religiosos. E o eu social foi atribuído ao reconhecimento que cada um obtém dos outros. Como o próprio James escreveu: “um homem tem tantos eus sociais quantos são os indivíduos que o reconhecem e dele levam uma imagem na mente”.
Por outro lado, também Freud dedicou grande parte de seu trabalho a mostrar que o psiquismo é formado por distintas partes (superego, ego e id), que entram em conflito e buscam soluções de compromisso. Além disto, a Psicanálise está fortemente baseada na idéia de que a identidade pessoal é um “precipitado” de inúmeras identificações ocorridas ao longo da vida, principalmente nas fases mais precoces do desenvolvimento.



Os antropólogos nos informam que se desconhece qualquer cultura humana que não tenha um termo para designar a noção de “eu”, e pelo menos uma alguma idéia abstrata de identidade. Apesar disto, as maneiras como a identidade é pensada ao longo do tempo e através das culturas varia grandemente. Ainda assim, a idéia de um Eu indivisível, coeso e permanente persiste, pelo menos no senso-comum, como a versão predominante na cultura ocidental da qual fazemos parte, e é uma das principais heranças da modernidade.
Na Antiguidade essa noção aparece em conceitos que compreendem uma gama de significados associados a uma idéia comum de “alma”, ou de uma parte incorpórea – metafísica – do ser humano. Em sânscrito havia alman, em grego psyche, em latim animus e spiritus. Muitos desses conceitos remetiam ao que viria a ser denominado posteriormente de “mente”, “psiquismo”, ou “identidade”. Essa superposição de significados existe ainda hoje no idioma alemão, com o termo Seele, que se refere tanto à alma quanto à mente, e que foi a palavra usada originalmente por Freud em suas obras para se referir à mente.
A concepção de pessoa ou indivíduo, tal como a entendemos, tampouco coincide com aquela que existe em outras culturas. Em várias sociedades (quando) ainda não contaminadas pela cultura ocidental moderna, o conceito de Eu não tem a conotação de um ser autônomo e independente, mas sim a alguém que faz parte de um todo maior. Entre os Zulu da África meridional, por exemplo, existe a seguinte expressão: umuntu ngumuntu ngabantu, que significa “você é apenas uma pessoa por causa das outras pessoas”. E o conceito de humanidade, nesta cultura, inclui não apenas as outras pessoas, mas também os outros seres vivos e falecidos, e os ambientes naturais e materiais que dão sustentação à vida.
Semelhante é o nisba, na cultura tradicional dos Sefrou, do Marrocos. O nisba é a partícula do nome de toda pessoa que a identifica com algum grupo de parentesco ou afinidade, significando “nascido em tal lugar”, “filho de fulano”, “de tal tribo”, etc. Algo como “Leonardo da Vinci”, ou seja, da localidade de Vinci.
Nessas culturas, a idéia de pessoa é muito mais relacional do que na nossa, e tem uma conotação muito menos individualizada que na nossa. Entretanto, pelo menos no campo das ciências humanas, isto vem mudando. Pode-se dizer que os Zulu e os Sefrou já antecipavam as tendências atuais de se pensar o mundo em termos sistêmicos e ecológicos, com o ser humano fazendo parte de contextos naturais e sociais mais amplos.