sexta-feira, 3 de abril de 2009

Os outros que somos

A natureza da identidade pessoal, pensada como “alma”, já estava presente no pensamento ocidental desde a Antiguidade. Após o interregno da Idade Média, ela é retomada na Idade Moderna com fortes traços de racionalidade, autonomia e auto-determinação. Entretanto, toda a reflexão sistemática sobre o indivíduo – seja como um ente metafísico, sensível, racional ou político – era realizada no âmbito da filosofia. É apenas no início do século XX que surgem disciplinas científicas bem definidas que têm como objeto o conhecimento da mente humana. Com o advento da Psicologia e da Psicanálise, a idéia da racionalidade como centro das decisões humanas, tão cara à Modernidade, sofre um importante revés.

A identidade pessoal é resultante do entrecruzamento de múltiplas vertentes e não pode ser separada dos processos de interação humana em seus vários níveis: as identificações que se iniciam no contexto familiar; as trocas simbólicas que ocorrem nas vivências cotidianas e que são diferentes em cada cultura particular; e as forças de agrupamento e coesão provenientes das religiões, dos partidos políticos, da noção de “raça” e de nacionalidade, etc.

O psicólogo norte-americano George Mead, fundador da escola denominada Interacionismo Social, foi um dos primeiros, no ínicio do século XX, a dar a devida destaque às identificações do indivíduo com os “outros significativos”. Esta expressão, largamente utilizada na psicologia até hoje, refere-se às pessoas mais importantes no convívio da pessoa, que serão as matrizes para a construção da identidade pessoal. Segundo Mead, a sensação que cada um tem de ser uma pessoa única se constroi apenas indiretamente, a partir da inserção no grupo social. O Eu, embora tenha um núcleo biológico, não pode ser concebido fora do campo das experiências das trocas sociais, e a a linguagem é o veículo primordial desse processo.

Mais ou menos na mesma época, o fundador da psicanálise, Sigmund Freud, construía as bases de seu edifício teórico, que enfatizou como nunca antes a importância das relações precoces do bebê na formação de sua futura personalidade. Esta idéia vem sendo cada vez mais comprovada pelas ciências neurobiológicas atuais, embora com uma outra linguagem e com pontos de partida completamente diferentes. Estudos recentes comprovam que as conexões neuronais que definem grande parte dos modos de funcionamento da mente, tanto em seus aspectos saudáveis quanto patológicos, formam-se exatamente nesses primeiros anos da vida.

Segundo Freud, a psicologia individual é sempre uma psicologia social, já que todos nós trazemos dentro de nós, principalmente num nível inconsciente, as imagens e os exemplos das figuras importantes que nos constituem. Inicialmente, e com mais importância, de nossos cuidadores básicos da primeira infância, e, depois, de tantas outras pessoas com quem vamos convivendo.

Um dos mais influentes seguidores de Freud, o inglês Donald Winnicott, ampliou a teoria sobre a importância da mãe para a saúde mental do bebê, e para a formação de sua futura personalidade. Para tanto, afirma ele, é necessário que a mãe seja “suficientemente boa”, com a capacidade de reconhecer os primitivos estados de ânimo do bebê (fome, frio, desconforto, etc.) e de satisfazer as suas necessidades básicas. Na medida em que a mãe lhe dá a segurança de que não vai abandoná-lo, e de que sempre retorna quando se afasta, o bebê gradualmente vai se dando conta de que é um ser separado. A sensação de estabilidade dos vínculos emocionais é, portanto, crucial para a manutenção da segurança ontológica (e da auto-estima) e para o desenvolvimento saudável da criança.

Quando o processo de desenvolvimento psicológico da criança não ocorre de forma satisfatória, há uma forte possibilidade de que ela cresça uma pessoa insegura de seus próprios valores, e que buscará constantemente a segurança nos relacionamentos com os outros. É a isso que Winnicott denomina de “falso-eu”, que leva a uma modalidade de relacionamento com os outros baseada na submissão e na busca de aprovação. A pessoa vive num faz-de-conta, tentando se parecer com cada um de quem se aproxima.

O cineasta Woody Allen retratou muito bem esse tipo de personalidade no filme Zelig, sobre um homem camaleônico que assume impressionante semelhança com aqueles que o rodeiam. Conforme o narrador do filme afirma,
a própria existência de Zelig é uma não-existência. Desprovido de personalidade, ele é um número, um ninguém, um fenômeno em atuação. Ele, que só queria se encaixar, participar, passar desapercebido por seus inimigos, e ser amado; nem se encaixa, nem participa.

Algumas das faces de Zelig

O falso-eu é uma das manifestações do narcisismo patológico, juntamente com a necessidade de símbolos externos de poder para dar sustentação à uma auto-estima excessivamente frágil.

Além das referências pessoais (mais próximas), a identidade pessoal e social é constituída pelas referências ao tempo e ao espaço: onde e quando nascemos, nos graduamos, vivemos e trabalhamos, são informações primárias para a nossa identificação.

Toda pessoa tem necessidade de reconhecer a si mesma, e de ser reconhecida, como uma pessoa única, entre tantas outras. Por outro lado, há a necessidade de pertencimento: a sensação de que não se está só, de que se faz parte de uma comunidade, de uma religião, de uma cultura ou de uma nação. A construção da identidade envolve, portanto, estas duas forças contraditórias e complementares: a vontade de ser único e a vontade de fazer parte.

Em última instância, toda identidade é “grupal”. Há um processo de dupla mão, no qual a comunidade reconhece o indivíduo como um dos seus, e o indivíduo reconhece os modelos fornecidos pela comunidade. Os membros de um grupo compartilham sistemas simbólicos e geralmente têm os mesmos tipos de experiências. Assim, as identificações grupais se constituem em estratégias de manutenção da segurança ontológica e de sobrevivência psíquica.